Maria Clara Lucchetti Bingemer
Desde o fundo da angústia da morte, desde o fundo da escuridão do sepulcro, explode o Aleluiah cantado pelo povo. Nos lábios, nos corações, nas gargantas, na assembléia reunida e no coro afinado: Aleluiah! Aquele que estava morto ressuscitou e está vivo. Não há que busca-lo entre os mortos, mas no caudal torrencial da vida que jorra abundante e plena, da alegria comunitária e da missão compartilhada.
Por isso é tempo de cantar: Aleluiah. Palavra transliterada do hebraico, que significa “Louvai o Senhor Deus”. A palavra Aleluiah, canto de louvor da tradição judaica, encontrada em muitos salmos de Israel, será apropriada pelos cristãos para dizer do júbilo do povo diante do poder infinito de seu Deus que faz acontecer a impossível vida arrancando-a das garras da morte.
A palavra Aleluia é uma combinação. Em sua primeira parte remete ao Hallel, oração típica judaica, composta de um conjunto de seis salmos cantados em ocasiões de grande alegria. Entre as ocasiões em que é cantado, o Hallel está a das preces noturnas da primeira noite da Páscoa judaica. E o motivo para a alegria é bem evidente: o povo de Deus, cativo e escravo em terra estrangeira, faz a travessia, o êxodo para a liberdade. A segunda parte da palavra, Yah ou Jah é uma forma abreviada representada pela primeira metade do tetragrama YHVH, o impronunciável nome de Deus que o israelita piedoso não pronuncia, mas que conheceu transliterações nas línguas latinas e neolatinas. E aí está o canto pascal de extrema alegria quando acontece a outra travessia, que o galileu de Nazaré realizou da morte em direção à vida: “Haleluyah! Aleluiah! Louvem, louvemos o Senhor!”
No final do quarto livro dos Salmos, Aleluiah aparece junto com Amém, palavra igualmente hebraica que significa a adesão a um mistério que estrutura a vida. O fiel, diante das maravilhas de Deus, responde de todo coração: “Amém”. Assim seja! Verdadeiramente! E assim expressa sua total adesão àquilo que crê sem ver e que passa a ver informado pela fé. A vida que vence a morte, o amor como último sentido da história.
Não é à toa que o livro do Apocalipse, ultimo da Bíblia cristã, diz na mensagem à igreja de Laodicéia, referindo-se a Jesus: “Eis o que diz o Amém, a Testemunha fiel e verdadeira...” E os cristãos compreenderam desde o princípio que ao dizer Amém estavam sendo inspirados e movidos pelo próprio Espírito de Jesus que lhes permitia reconhecer entre os vivos aquele que viram morto. Jesus é o verdadeiro Amém do Pai à humanidade e ao mundo. A razão e os sentidos não permitem dizer Amém ou cantar Aleluiah. Apenas a fé tem o poder de transformar uma celebração que seria de luto na festa da alegria.
A Páscoa que celebramos é essa festa da alegria. Da alegria gratuita e sem motivo aparente. Pois os sentidos e a razão passeiam órfãos e desorientados entre um túmulo vazio, grávido de uma ausência e a memória ainda fresca dos tormentos de um condenado que expirou cheio de confiança em Deus. A fé, no entanto, vê o mistério que rompe o silencio e as trevas da morte e soa como clarim que convoca o dia. Ele está vivo. O mesmo que morreu está vivo no meio de nós.
E nós somos invitados a essa festa. Nós que sempre queremos ver para crer, agora somos convidados a crer sem ver. Ou melhor, a crer com um olhar novo e reencantado, pousado sobre as pessoas e os fatos. Um olhar que percebe a vida ali onde ela apenas se deixa vislumbrar. Um olhar que vê além da superfície e das aparências e reconhece por antecipação que o céu invade frequentemente a terra.
Hoje é Páscoa e o Crucificado ressuscitou. Esta é a formidável novidade, a incrível Boa Nova: Jesus está vivo, saído do túmulo, e se deixa perceber de maneira inesperada e gratuita pelos discípulos. E estes o reconhecem: no partir do pão, no pronunciar do nome, no gesto que instaura a paz, na pesca que faz transbordar de peixes o mar antes estéril e inclemente. Jesus que foi visto morto agora é o Vivente. Vivo em Deus e na história, ele nos faz viver desta vida nova que não termina e da qual nada nem ninguém podem retirar a fundamental alegria.
Por isso, há que dizer “Amém!”, uma e muitas vezes. É verdade, que assim seja! E por isso também e sobretudo , é preciso cantar “Aleluia”. Ele ressuscitou e nos diz que a última palavra de Deus sobre a criação e a vida humana não é a morte , mas a vida.
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, e Diretora Geral de Conteúdo do Amai-vos. É também autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.
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